Objetivo

O blog visa compartilhar registros das aulas (anotações, fotos, vídeos) comentários críticos sobre os procedimentos vivenciados, acrescentar textos teóricos, poéticos, sugestão de links, músicas. São 15 tópicos, referente as cada uma das aulas ministradas entre março e junho de 2010. Em agosto de 2010 serão publicados artigos hipertextuais produzidos por cada um dos alunos que focam princípios e procedimentos de encenação.



Estranhamento (Poético)

(por Sérgio Pupo)

Procedimento cênico que se vale do atrito proposital entre dois ou mais elementos de construção da cena, propondo ao espectador, numa estrutura geralmente polissêmica, uma alteração da resposta esperada para aquela determinada situação cênica. O espectador se depara com o desconcerto sensorial e sinestésico, potente fonte poética.

Paradoxal – potência dialética.
O termo Estranhamento Poético contém ao mesmo tempo uma instância objetiva, capaz de ser descrita através de uma lógica generalizante e de outra subjetiva e particular, difícil de ser precisada, ou mesmo sistematizada. Cria-se uma tensão entre os significantes, alterando a percepção dos significados ali presentes.
Esta tal tensão entre os significantes estabelece a possibilidade de uma verdade dialética, na medida que a sua forma não se pretende ilusão fácil. É um jogo entre o que é apresentado e quem recebe a apresentação, que não está mais num lugar passivo, pois o estranhamento poético requisita dele uma reação, racional ou emocional.
Guardadas as devidas proporções com o que podemos considerar estranhamento hoje em dia, em cada forma artística, poderíamos identificar através da história das artes alguns expoentes do passado que ousavam fazer o receptor de suas obras fruir alguma forma de estranhamento. Como destaca Caio Meira em seu estudo da poética de Rimbaud e falando sobre o que ele chama de estranhamento poético em seus textos:


“Desconhecido, sabe-se, é uma outra maneira de nomear-se o que é estranho ou estrangeiro. Em francês, o termo étranger quer dizer ao mesmo tempo estranho, estrangeiro e também desconhecido. Esse desconhecido ou estranho, queremos tomá-lo no mesmo sentido que Freud deu em seu artigo de 1919, O estranho. A partir da palavra alemã Unheimlich, Freud observa que "o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, velho, e há muito familiar." Um estranhamento ou uma estranheza ocorre quando algo de familiar se mistura ao que é desmesurado, diferente ou extraordinário. Trata-se de uma sensação em que se rompe a fronteira entre o íntimo e o desconhecido, quando o que é interior se confunde com o exterior, o confortável passa a ser incômodo ou ameaçador, e o conhecido torna-se estrangeiro. Por isso, o estranho surge sempre como uma fratura da continuidade ou da intimidade do eu, pois não indica um desconhecido qualquer, mas algo que rompeu a barreira da homogeneidade interior desse eu e se situa justamente no limite entre o familiar e o selvagem, entre o doméstico e o que ainda não foi domesticado.
Já o estranhamento poético a que chegou Rimbaud — através do desregramento de todos os sentidos — corresponde a uma convivência com o próprio desassossego, a viver em permanente estado de ruptura não somente ao que o cerca, mas também ao que lhe é mais íntimo. Do ponto de vista poético, isso se traduz na tentativa de notar o inexprimível, e de fixar vertigens(…)”

Situando o termo estranhamento nas artes cênicas:

Concepção épica
O estranhamento poético é um termo “primo-irmão” do Estranhamento Épico. Também conhecido por vários autores como efeito de distanciamento, este termo é reconhecido por Patrice Pavis que ele tenha sido cunhado por Bertolt Brecht na primeira metade do século XX.
O estranhamento consiste em “despertar” o espectador da ilusão que a cena dramática é capaz de propor, requisitando deste uma postura crítica ante a cena apresentada. Segundo Brecht:
“O efeito de distanciamento transforma a atitude aprovadora do espectador, baseada na identificação, numa atitude crítica. (…) Uma imagem distanciante é uma imagem feita de tal modo que se reconheça o objeto, porém que, ao mesmo tempo, este tenha um jeito estranho” (Pequeno Organon, 1963, § 42).
Para Brecht, além de um ato estético, é um recurso ideológico, no qual a obra se coloca politicamente.
Apesar de ter sido descrito e explicado consistentemente somente a partir de Brecht e Piscator, com suas encenações que fugiam ao realismo dramático, vale lembrar que o estranhamento épico já havia se mostrado na dramaturgia, e na encenação em vários outros países e contextos culturais diferentes. Temos no Brasil, Oswald de Andrade com o seu texto “O Rei da Vela”, a primeira vez que num texto da nossa dramaturgia, o personagem se dirige à platéia, anos antes de Brecht consagrar este recurso.
Há também exemplos da alternância entre ação narrada e ação mostrada, executadas pela mesma pessoa, no teatro tradicional japonês (, Kiogen), bem como em muitas outras manifestações da cultura popular e tradicional de vários países - se bem, que sem a premissa política e ideológica do estranhamento épico.

Concepção poética – distinções da concepção épica
Antes de maiores polêmicas, cabe aqui ressaltar que a concepção épica de estranhamento também possui em sua essência a dimensão poética, ou seja, ela não é isenta de metáforas. Apenas é preciso dizer, que o estranhamento brechtiniano (épico), apesar de também estabelecer conexões sensoriais, possui algo que é inerente ao épico (Costa,Iná Camargo, 1998): um super-objetivo político e estético, com o qual o estranhamento em questão deve corroborar, junto com todos os outros elementos da encenação.
Elas (as concepções épica e poéticas de estranhamento) são, portanto, substancialmente diferentes, porém não opostas, ao que me parece.
Na concepção poética, propriamente dita, temos um estranhamento causado por elementos que mantêm uma coerência que é muito mais gestáltica (na corrente dualista), no sentido de estabelecer conexões sensórias com as várias partes que compõem o todo, podendo tornar subjetivo o objeto mostrado.
A possibilidade de uma fruição, que não está atrelada, necessariamente, ao desenvolvimento cartesiano e aristotélico das ações da obra de arte, faz com que o procedimento cênico do estranhamento poético não tenha na fábula clássica uma condição de existência.
Sobre a fábula, Patrice Pavis, descreve em seu Dicionário de Teatro:

Fábula, sentido clássico
“compor a fábula é para o autor dramático estruturar as ações-motivações, conflitos, resoluções, desenlace – (…) respeitar a ordem cronológica e lógica dos acontecimentos (…)”
A fábula em Brecht
“Reside aí aliás a ambigüidade desta noção em BRECHT: a fábula deve seguir o seu curso, reconstituir a lógica narrativa e ser, entretanto, incessantemente interrompida por distanciamentos apropriados.”


Se por um lado o estranhamento épico retira da fábula a sua continuidade, fragmentando-a, estranhado-a, para que percebamos aquela história no contexto da História (P. Pavis, 1998), ele mantém a ideia de algo a ser contado.
Já o estranhamento poético, consegue se relacionar com uma história que não necessariamente precisa ser racionalmente compreendida.


Exemplos, referências e experiências pessoais estranhamente poéticos
Das várias linguagens artísticas que marcaram presença no séc. XX, a dança se serviu fartamente do estranhamento poético, a ponto de influenciar largamente o teatro contemporâneo. Podemos arriscar dizer que hoje, o estranhamento poético se consagra como uma possibilidade de procedimento cênico inerente ao teatro pós-dramático, ainda que não obrigatório.
Com a urgente necessidade de quebrar paradigmas de encenação ligados à fábula e gestos excessivamente descritivos, a dança foi traçando uma evolução na qual se tornava cada vez mais emancipada e inovadora, sempre em busca de novas relações entre forma e conteúdo que dessem conta de dialogar com os seus intérpretes e público em cada tempo.
A encenadora, coreógrafa e bailarina Pina Bausch, atingiu, com o uso do estranhamento poético, entre outros tantos e interessantes procedimentos, efeitos realmente sublimes. Um exemplo é O Lamento da Impreatriz, obra na qual o estranhamento poético desautomatiza a leitura, obrigando o espectador a um novo foco. Mas não há um “chão”, o espectador está sempre sendo levado a um estado de fascinação pela inquietação das imagens.

Meu encontro com um poeta estranha-dor – a beleza do estranho.
No Brasil, o encenador, coreógrafo e artista plástico Takao Kusuno teve um papel fundamental na formação de uma dança com gestos não-mecanizados, na qual elementos da encenação teatral e das artes pláticas eram misturados em seus espetáculos.
Takao foi um mestre também em estranhamentos poéticos, bem estranhos, bem poéticos.
Descendente artístico e discípulo direto de Tatsumi Hijikata, um dos criadores do movimento butô, junto com Kazuo Ohno;Takao foi um performer e ele mesmo um body artist no Japão, sua terra natal.
Ao chegar ao Brasil, no início da década de 70, trouxe consigo algumas chaves que eram absolutamente novas na dança – pois ainda não tínhamos referências do Butô. Takao nunca disse que havia trazido o butô para o Brasil, apesar de tê-lo feito. Aliás, quando o conheci em 1998, ele mal adimitia que sua obra era a dança- de raízes expressionistas que floresceu numa contracultura.
Os espetáculos “As Galinhas”, com Dorothy Lenner, Ismael Ivo e Renne Gumiel e “Corpo I” foram nas palavras de Christine Greiner, verdadeiros marcos para a dança brasileira. “O Olho do Tamanduá”, ganhador de vários prêmios, foi considerado uma obra prima por conseguir numa síntese antropofágica, unir de forma orgânica conceitos do corpo japonês e conceitos da dança xavante.
Cito uma cena do espetáculo que fiz como criador- intérprete, no último espetáculo dirigido por Takao (“Quimera: o anjo vai voando”, 1999)antes de sua morte em 2001, como exemplo de estranhamento poético.
Para o Takao o estranhamento poético era quase uma condição da cena; era mais que um recurso cênico, era uma forma de pensar o homem contemporâneo.
Neste espetáculo há uma cena na qual o bailarino Ricardo Iazzetta atravessa o palco com um violino nos braços e um rústico balaio de palha nas costas. Dentro do balaio há uma grande asa branca de um anjo. A trilha sonora são sinos, um fundo contínuo e agudo, que vão pouco a pouco se transformando na inusitada Imagine, de John Lennon.
O resultado desta estranha poesia visual é que, de fato, mesmo as pessoas que não tinham o menor habito de apreciar qualquer tipo de dança ou qualquer forma de teatro pós-dramático, se emocionavam a ponto de sair da peça com “suas almas lavadas", mesmo que não soubessem explicar o porquê de suas próprias lágrimas.


Houve um estranhamento poético.











Bibliografia:




CALDEIRA, Solange Pimentel. O lamento da imperatriz: a linguagem e o espaço em Pina Bausch. São Paulo: Annablume, 2009.

CARVALHO, Sérgio de Carvalho (org). Introdução ao Teatro Dialético-experimentos da Companhia do Latão.1.ed. Sâo Paulo: Expressâo Popular; Companhia do Latão, 2009.


COSTA, Iná Camargo. Sinta o Drama. : Ed. Vozes: São Paulo, 1998.

FERNANDES, Ciane. Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação. São Paulo: Annablume, 2007

FLUSSER, Vilem. Ensaio sobre a fotografia. Ed.Relógio D´Água. Lisboa, 1998.
2009


LEHMANN, Hans-Thies. Teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1999.

MARTINS,Marcos Bulhões. Encenação em jogo: experimento de aprendizagem e criação do teatro. São Paulo: Hucitec, 2004.





Links

http://www.mitologica.com.br/joomla/index.php?option=com_content&task=view&id=13&Itemid=2

http://www.unicap.br/socine/resumosS6.htm

http://www.revistadadanca.com/node/185

http://www.caiomeira.kit.net/rimbaud.htm

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